Estelas para Mário Cesariny
Fernando J.B. Martinho*
Costuma dizer-se que o Surrealismo chegou tarde a Portugal. Só na década de 40, com efeito, surgiram os primeiros grupos surrealistas organizados. Ainda assim, deu-nos ele, pelo menos, três grandes poetas: António Maria Lisboa, figura mítica que a morte não deixou que plenamente se revelasse; Alexandre 0’Neill, mais propenso ao falar que ao imaginar, como ele próprio disse, e que implacavelmente nos retratou se não mesmo nos radiografou como país; e Mário Cesariny, que fez corpo com o Surrealismo como nenhum outro, sem todavia voltar as costas à tradição poética portuguesa.
Ainda nos anos 40, Mário Cesariny louvou e simplificou Álvaro de Campos. Curiosamente, porém, no poema em que o fazia, dava vivas a Mário de Sá-Cameiro, noutro texto celebrado pela sua falta de “Jeito Para o Negócio” e por se recusar “a beber o pátrio mijo”. Lá mais para trás, ele que já tem sido apontado por alguma crítica, não sem razão, como um poeta realista, olhou para o mestre de todos os que, entre nós na modernidade, se empenharam numa poesia de retorno ao real, Cesário Verde, tomando-o como guia, por exemplo, nas deambulações urbanas de Corpo Visível. Atento, naturalmente, a um dos veios mais salientes da poética surrealista, o da poesia visionária, não lhe escapou a força imensa de Pascoaes, para cuja importância constantemente chamou a atenção em anos dominados pela voga (ou vaga) pessoana, salientando, com cáustica ironia, numa entrevista ao Expresso, em Janeiro de 1985: “A única coisa que me irrita é terem posto o Pascoaes de margem, como provinciano, e haver esta loucura do Pessoa. Um está no café, em Lisboa, o outro está na montanha. O Pascoaes tem uma grandeza, uma respiração... Mas o Pessoa tinha um jeito para a expressão literária a que o outro não ligava. O Pascoaes anda com a montanha toda, com a caca e com o céu, e não se separam. O Pessoa é um filtrador - e escreve tão bem, que a gente tem de aderir...”. Sensível ao imaginário e aos sábios equilíbrios de ritmo e rima da poesia tradicional, soube-lhe bem recriá-la, explorando-lhe o gosto que ela frequentemente tem pelo humor negro, como se vê na “Xácara das 10 meninas” e particularmente no seu final:”[...]/ Era hua vez duas meninas/ ante hu home todo espuma./ Deo o tranglomanglo nelas/ transformaram-se em só hua./ Era hua vez hua menina/ terrada em coval muy fundo./ Deo o tranglomanglo nela/voltaram as dez ao mundo.”
O poeta não é, todavia, apenas “o autor do poema”, como, escassos meses antes de morrer, teve ocasião de lembrar em entrevista a uma jovem lusitanista italiana: “é também um actor, um prestigitador”. Basta considerar, como em tempos pude fazer com algum vagar, os títulos de alguns dos poemas de Manual de Prestidigitação, claramente aludindo ao universo teatral. Não admira, pois, que, ele que era, afinal, autor de textos dramáticos (cf. Um Auto para Jerusalém) e que viu, há uns anos, textos seus teatralizados numa inventiva encenação de Maria Emília Correia, se servisse de uma citação do Hamlet de Shakespeare para um dos seus mais famosos poemas, “You are welcome to Elsinore”. De resto, o dramaturgo inglês, generoso doador de metáforas, está também por detrás, como se sabe, do título de um livro de 0’Neill, No Reino da Dinamarca, modo eufemístico de aludir ao reino cadaveroso que era o Portugal dos anos 50. À situação de emparedamento que nele se vivia também alude o veemente final do poema de Pena Capital que exibe no título a saudação de Hamlet aos actores na cena 2, do II acto, da peça de Shakespeare: “Entre nós e as palavras, os emparedados/ e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. Não por acaso um dos seus poemas de homenagem é dedicado a Antonin Artaud, que fez do teatro e da revolução que nele quis o centro da sua vida. Nesse texto, que é um dos poemas cimeiros da sua obra, põe aquela que será, porventura, a questão nodal de toda a literatura dramática, a das tensões da identidade própria e alheia, não deixando de aludir à estética, que fez sua, de transe ritualístico e de transformação radical do espectador/ leitor proposta pelo poeta homenageado: “[...]// O meu nome deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível/ para que seja impossível encontrá-lo/ sem de alguma maneira enveredar pela estrada/ Da Coragem/ porque a este respeito - e creio que digo bem -/ nenhuma garantia de leitura grátis/ se oferece ao viandante// [...]”. Nessa dimensão tenebrosa e cantante da poesia de Cesariny estaria certamente a pensar Herberto Helder, seu par na força irradiante e projecção sobre as gerações posteriores, quando a propósito dela, em 1988, escreveu as seguintes palavras: “o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível - não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade”. Mas há outro, outros Cesariny, como o da simplicidade, é certo que não menos enigmática, obscura, de “O navio de espelhos”, que encontrou ou lhe foi ditada, não importa: “O navio de espelhos/ não navega, cavalga// Seu mar é a floresta/ que lhe serve de nível// Ao crepúsculo espelha/ sol e lua nos flancos// [...]”. A nós cabe, onde quer que esteja, sob que máscara, palavras ou ritmos, entender-lhe o daimon, com ele seguir viagem “Do princípio do mundo/até ao fim do mundo”. Nem mais nem menos exigem de nós os grandes poetas.
* Prof. na Fac. de Letras da Univ. de Lisboa
Costuma dizer-se que o Surrealismo chegou tarde a Portugal. Só na década de 40, com efeito, surgiram os primeiros grupos surrealistas organizados. Ainda assim, deu-nos ele, pelo menos, três grandes poetas: António Maria Lisboa, figura mítica que a morte não deixou que plenamente se revelasse; Alexandre 0’Neill, mais propenso ao falar que ao imaginar, como ele próprio disse, e que implacavelmente nos retratou se não mesmo nos radiografou como país; e Mário Cesariny, que fez corpo com o Surrealismo como nenhum outro, sem todavia voltar as costas à tradição poética portuguesa.
Ainda nos anos 40, Mário Cesariny louvou e simplificou Álvaro de Campos. Curiosamente, porém, no poema em que o fazia, dava vivas a Mário de Sá-Cameiro, noutro texto celebrado pela sua falta de “Jeito Para o Negócio” e por se recusar “a beber o pátrio mijo”. Lá mais para trás, ele que já tem sido apontado por alguma crítica, não sem razão, como um poeta realista, olhou para o mestre de todos os que, entre nós na modernidade, se empenharam numa poesia de retorno ao real, Cesário Verde, tomando-o como guia, por exemplo, nas deambulações urbanas de Corpo Visível. Atento, naturalmente, a um dos veios mais salientes da poética surrealista, o da poesia visionária, não lhe escapou a força imensa de Pascoaes, para cuja importância constantemente chamou a atenção em anos dominados pela voga (ou vaga) pessoana, salientando, com cáustica ironia, numa entrevista ao Expresso, em Janeiro de 1985: “A única coisa que me irrita é terem posto o Pascoaes de margem, como provinciano, e haver esta loucura do Pessoa. Um está no café, em Lisboa, o outro está na montanha. O Pascoaes tem uma grandeza, uma respiração... Mas o Pessoa tinha um jeito para a expressão literária a que o outro não ligava. O Pascoaes anda com a montanha toda, com a caca e com o céu, e não se separam. O Pessoa é um filtrador - e escreve tão bem, que a gente tem de aderir...”. Sensível ao imaginário e aos sábios equilíbrios de ritmo e rima da poesia tradicional, soube-lhe bem recriá-la, explorando-lhe o gosto que ela frequentemente tem pelo humor negro, como se vê na “Xácara das 10 meninas” e particularmente no seu final:”[...]/ Era hua vez duas meninas/ ante hu home todo espuma./ Deo o tranglomanglo nelas/ transformaram-se em só hua./ Era hua vez hua menina/ terrada em coval muy fundo./ Deo o tranglomanglo nela/voltaram as dez ao mundo.”
O poeta não é, todavia, apenas “o autor do poema”, como, escassos meses antes de morrer, teve ocasião de lembrar em entrevista a uma jovem lusitanista italiana: “é também um actor, um prestigitador”. Basta considerar, como em tempos pude fazer com algum vagar, os títulos de alguns dos poemas de Manual de Prestidigitação, claramente aludindo ao universo teatral. Não admira, pois, que, ele que era, afinal, autor de textos dramáticos (cf. Um Auto para Jerusalém) e que viu, há uns anos, textos seus teatralizados numa inventiva encenação de Maria Emília Correia, se servisse de uma citação do Hamlet de Shakespeare para um dos seus mais famosos poemas, “You are welcome to Elsinore”. De resto, o dramaturgo inglês, generoso doador de metáforas, está também por detrás, como se sabe, do título de um livro de 0’Neill, No Reino da Dinamarca, modo eufemístico de aludir ao reino cadaveroso que era o Portugal dos anos 50. À situação de emparedamento que nele se vivia também alude o veemente final do poema de Pena Capital que exibe no título a saudação de Hamlet aos actores na cena 2, do II acto, da peça de Shakespeare: “Entre nós e as palavras, os emparedados/ e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. Não por acaso um dos seus poemas de homenagem é dedicado a Antonin Artaud, que fez do teatro e da revolução que nele quis o centro da sua vida. Nesse texto, que é um dos poemas cimeiros da sua obra, põe aquela que será, porventura, a questão nodal de toda a literatura dramática, a das tensões da identidade própria e alheia, não deixando de aludir à estética, que fez sua, de transe ritualístico e de transformação radical do espectador/ leitor proposta pelo poeta homenageado: “[...]// O meu nome deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível/ para que seja impossível encontrá-lo/ sem de alguma maneira enveredar pela estrada/ Da Coragem/ porque a este respeito - e creio que digo bem -/ nenhuma garantia de leitura grátis/ se oferece ao viandante// [...]”. Nessa dimensão tenebrosa e cantante da poesia de Cesariny estaria certamente a pensar Herberto Helder, seu par na força irradiante e projecção sobre as gerações posteriores, quando a propósito dela, em 1988, escreveu as seguintes palavras: “o poder que mantém o universo de um grande poeta é inacessível - não está nas palavras mas entre elas, não está nos modos mas atrás deles, não está na claridade mas na obscuridade”. Mas há outro, outros Cesariny, como o da simplicidade, é certo que não menos enigmática, obscura, de “O navio de espelhos”, que encontrou ou lhe foi ditada, não importa: “O navio de espelhos/ não navega, cavalga// Seu mar é a floresta/ que lhe serve de nível// Ao crepúsculo espelha/ sol e lua nos flancos// [...]”. A nós cabe, onde quer que esteja, sob que máscara, palavras ou ritmos, entender-lhe o daimon, com ele seguir viagem “Do princípio do mundo/até ao fim do mundo”. Nem mais nem menos exigem de nós os grandes poetas.
* Prof. na Fac. de Letras da Univ. de Lisboa
in, 6ª Diário de Notícias, 29 DEZEMBRO 2007, p.12 e 13
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