Nuno Rogeiro e o Chile
O Praça do Chile
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Há um quarto de século, o general Augusto Pinochet tomava o poder em Santiago. Vários milhares de mortos e vivos. Depois, o chefe da quartelada torna-se senador vitalício. O Chile divide-se.
Eis uma versão do que se passou.
Eis uma versão do que se passou.
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“O vosso tanque, general, é uma máquina forte.
Destroça uma floresta, derruba cem homens mas tem um defeito:
precisa de um condutor”
Brecht
Destroça uma floresta, derruba cem homens mas tem um defeito:
precisa de um condutor”
Brecht
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Se a “direita” fosse “esquerda”. José António Primo de Rivera era o seu Che Guevara, De Gaule uma espécie de Kerensky, Franco algo entre Krutchev e Gorbachev, e o general Augusto Pinochet Ugarte, sem dúvida, o seu Stalin. Ou seja, o criador do universo concentracionário, de desaparecimentos na noite e no nevoeiro, de mordaças e internamentos, mas também o operário do desenvolvimento económico, do crescimento em flecha, em suma, da construção de uma “superpotência”. Sem liberdades civis “demo-burguesas”, mas com excelentes portos e auto-estradas.
O “estalinismo” de Pinochet só possuiu um paradoxo, e basta esse: é que terminou, não nas urnas fúnebres, mas nas urnas eleitorais. E o tirano saiu de cena pelo seu pé. Ou melhor, foi saindo. Revejamos, pois, urgentemente, as comparações.
Desde logo, o “tirano” continua a ser olhado pelos seus simpatizantes internacionais - por exemplo, pelo Figaro - como, no máximo, um “déspota esclarecido”, que salvou o Chile da anarquia e da pobreza, e o devolveu intacto aos civis. O acto simbólico da tomada de posse de Pinochet, como membro da câmara alta do parlamento, parece corresponder a esse (auto) convencimento, o de uma espécie de dever cumprido, o da salvação da Pátria. O ex-chefe da Junta Militar que tomou o poder em Santiago, há precisamente um quarto de século, não só não se mostra arrependido, como consegue ainda mobilizar adeptos e justificações. As versões chilenas das Mães da Praça de Maio (celebradas por Sting, para o povo do Ocidente Capitalista) bem podem sitiar o Senado, e clamar o continuado “Donde Están?”, que por cada vela e véu de revolta, haverá uma dona-de-casa capaz de jurar que, sem Pinochet, o país seria Cuba.
Devo dizer que, em 1975, quando ensaiava, com muitos outros “camaradas” mais ou menos anónimos, a implantação de um movimento simultaneamente nacionalista e revolucionário em Portugal, achava que Pinochet era a principal arma contra a esquerda, contra todas as experiências políticas fora da área estrita e dogmaticamente marxista-leninista. Lembro-me de discussões infindáveis e impróprias, primeiro na cantina do Liceu Pedro Nunes, depois no anfiteatro um da Faculdade de Direito (e na aula magna da reitoria da Universidade de Lisboa), onde nos irritámos soberanamente com os “conservadores” e “direitistas” (aliás sempre coerentes) que se recusavam a sacudir os militares chilenos do capote, e a renunciar (e a denunciar) a Pinochet. Por mim, sempre ia achando que era melhor salientar a hipocrisia de Mecas comunistas, como a China Popular, que continuava a negociar alegremente com a Nova Ordem de Santiago.
É que a “tranquilidade” chilena fizera-se com demasiados atropelos, vítimas, excessos e crimes descarados. Mesmo um homem insuspeito como o conservador (com fortes ligações à família dos serviços de informações) britânico Robert Moss, reconhecia (no seu clássico menor anticomunista, Tlie Collapse of Democracy) que o facto de Salvador Allende Gossens ter feito a corda que o enforcou (como bom burguês que descobriu o marxismo), não podia desculpar os disparates económicos (Moss escrevia em 1975) e os assassínios de quem trabalhava, mandava trabalhar ou dizia trabalhar para a Junta.
Em 1976, a igreja Católica chilena calculava que l% da população tinha sido detida, por períodos desiguais, desde o golpe de Setembro. A OEA indicava também nessa altura 4000 prisioneiros políticos, centenas de desaparecidos e talvez 2000 mortos. A Comissão Nacional para a Verdade e Reconciliação, estabelecida depois do regresso ao domínio civil, já nos anos 90, variou nas estimativas, e sobretudo sugeriu que várias mortes derivaram, não de execuções por “esquadrões da morte” (como no Salvador, ou na Argentina), mas de situações de combate urbano e quase-guerrilha.
Nos anos 70, porém, o Chile era, para a esquerda europeia, o que a Espanha Republicana, sobretudo depois de Guernica, foi para os intelectuais ”progressistas” de todo o mundo. As universidades ocidentais enchiam-se de “professores” exilados, que contavam histórias das piores atrocidades, formavam-se comités de solidariedade por toda a parte, Charlie Haden e Carla Bley tocavam, num formato de jazz., o “El Pueblo Unido Jamás Vencido”. Costa Gavras e Chove em Santiago divulgavam um regime de gritos e de sombras, erguia-se a lenda do trovador “guevarista” Vítor Jara, mãos quebradas e o crânio estilhaçado pela polícia de choque, depois de internado num campo de futebol. Em capelas e em bares, ouvia-se o último discurso-testamento de Allende (“Tengo fé en Chile y su futuro...”), o talentosíssimo grupo “étnico” Inti Illimani e o baterista hemiplégico Robert Wyatt (uma das grandes inspirações de muitas cabeças do meu tempo) declamavam regularmente fragmentos da “revolução impossível”, e os consulados e embaixadas do Chile eram boicotados, sitiados, ocupados e sabotados, um pouco por toda a parte.
Quem viveu esses tempos intensamente - até porque havia também uma revolução em curso, cá dentro - lembra-se das paixões e dos ódios que Allende, Chile e Pinochet despertavam. Sempre que o MFA, a 5a Divisão e o COPCON queriam alertar as massas para mais um golpe “reaccionário” na forja, agitavam o espantalho dos generais de Santiago. E muitas experiências “económico-sociais” do PREC diziam-se inspiradas num outro desastre, a política do governo de “unidade” de Allende, entre 1970 e 1973. Foi essa loucura laboratorial que levou Salvador Dali a dizer: “Os supercapitalistas espanhóis podem estar tranquilos, depois do que se passou em Portugal. Agora sim, não pode haver democracia socialista em Espanha.”
Mas como é que tudo, verdadeiramente, começou? A república chilena, fundada há 180 anos por um general revolucionário de ascendência irlandesa e por um exército argentino, teve durante o século XX experiências várias com governos de “Frente Popular”, e comportou sem um Partido comunista determinado e sólido. Nos anos 60, porém, o nome da esperança refomormista em política era o de Eduardo Frei, grande amigo de Marcello Caetano (que continuou a corresponder-se com este, mesmo quando do exílio interno de um e do exílio externo do outro), dirigente de uma democracia cristã mais justicialista e menos liberal do que as suas europeias, que conseguiu, até 1970, retumbantes êxitos em eleições limpas. O seu projecto de distanciamento do “imperialismo ianque” deu-lhe popularidade, sobretudo quando renegociou a exploração, pelos americanos, das ricas jazidas de cobre do país. Mas as costumeiras divisões nas “direitas” chilenas (entre Radicais, “Nacionais”, “Cristãos Democratas”, e outras estirpes representativas das classes médias e altas) acabariam por conduzir um médico bon vivant, maçon e socialista, amigo de Fidel e admirador de Ho Chi Minh, várias vezes derrotado por Frei, ao poder. Chamava-se Salvador Allende, ganhou eleições presidenciais por cerca de 80 mil votos em relação ao segundo candidato, e com menos 720 mil votos do que os conseguidos por todos os propostos pelas direitas. Allende representava uma ampla coligação de esquerda (social-democrata, socialista, comunista), e o facto de não conseguir maioria absoluta levou a que, nos termos da Constituição vigente em 1970, tivesse que ser investido pelo Congresso, onde a Democracia Cristã o apoiou, em troca de garantias de “paz institucional”.
As primeiras medidas de Allende - congelamento de preços e subida generalizada dos salários - escandalizaram Havana e Moscovo (segundo a ortodoxia, o objectivo inicial de um estado socialista deveria ser o de aumentar a produção e nacionalizar todos os sectores económicos relevantes) e provocaram um disparo assombroso nos hábitos consumistas da população. Com o decorrer dos anos, porém, Allende começou a ver-se cercado por personagens e forças que garantiam um clima de “loucura revolucionária”. Em 1971, a revista Problems of Communism, pela escrita de Leon Gouré, Jaime Suchlicki e Luis Aguilar, analisava ainda em termos de “racionalidade” a evolução desta prospectiva Cuba da América do Sul. Mas em 1973, as esperanças de ponderação tinham-se perdido. A inflação atingia os 600%, tinham-se instituído comités políticos de ocupação industrial e agrária, o governo decretava “o fim do estado burguês”, o influente líder socialista Carlos Altamirano afirmava ominosamente, embora com lógica impecável, “que as revoluções não se fazem com votos”, havia milícias paramilitares por toda a parte, os Tupamaros uruguaios tinham erguido uma base no Norte, chefiada por Raul Bidegain Geissig, na fábrica El Beloto, 20 técnicos soviéticos davam treino militar a seguir à laboração, corriam (desde o Outono de 1972, e provavelmente como provocação) boatos sobre a compra a Moscovo de caças supersónicos MIG-21, duplicara o número de funcionários públicos, e os problemas do novo sistema eram atribuídos, oficialmente, ao “bloqueio invisível” dos EUA e à “sabotagem económica” das classes capitalistas.
Santiago tomava-se o centro de peregrinação de revolucionários de a América Latina, e Allende ouvia cada vez mais os “românticos” e os “radicais” de várias proveniências: “Coco” Paredes, chefe da polícia judiciária, Luiz Femandez de Ona, genro do presidente e oficial da DGI (serviço secretos) cubana, Andrés Pascal, sobrinho do líder do MIR (o movimento esquerdista que queria “completar” a revolução).
O clima conspirativo era palpável. Henry Kissinger e Frank Carlucci são acusados de conspirar contra Allende, a missão naval dos EUA em Valparaíso mantém contactos estreitos com a Armada chilena (tida como o ramo mais conservador, ou antimarxista), a CIA gasta 8 milhões de dólares em subsídios à imprensa, partidos, rádios, sindicatos (segundo alguns dados, a contribuição soviética, entre 70 e 73, cifra-se em 650 milhões), começam as marchas das “donas-de-casa” contra a escassez de bens, que se tornam famosas pelo uso de panelas e colheres como instrumento sonoro, há greve geral dos camionistas, mas Régis Debray, solto pelo regime boliviano, confessa que teme mais “o aburguesamento da revolução do que um golpe militar”.
O resto é história conhecida. Os generais conduzem um pronunciamento “preventivo”, sob o pretexto de que se preparava um motim bolchevique numa base naval. A Junta convence o Congresso e o Supremo Tribunal de que a intenção é “constitucional”, dado que Allende “violara compromissos” tomados durante a sua investidura, e se “desviara” do quadro legal. O novo regime parece corresponder, à primeira vista, ao “sistema de guardas”, que o politólogo Robert Dahl apontou como uma das críticas fundamentais à democracia: segundo os “guardas” neo-platónicos, as pessoas comuns não sabem o que é o bom e o justo, e logo não se podem governar a si mesmas. Mas o paternalismo blindado pinochetiano é diferente: trata-se de proteger a Nação do terrorista, do agitador, do estrangeiro sabotador. O exército faz aqui o papel do “partido de vanguarda” leninista (teorizado, por exemplo, pelo mexicano Adolfo Sanchez), justificando o akamiento com a especialização, com a história, com a competência, com a superioridade moral, com a legitimidade política, com a virtude e a necessidade.
Os primeiros comunicados, para usar uma imagem clássica de Edward Lutwak, não são nem românticos/ líricos, nem messiânicos, nem improvisados, mas “racionais-administrativos”. O exército chileno, tomado como exemplo de profissionalismo no subcontinente, promete uma transitoriedade duradoura. Em 73, a Junta fala num período de excepção de 5 ou 6 anos, mas um ano depois Pinochet toma as rédeas, e chega a declarar que não haverá retomo durante a sua vida, “enquanto não se extirpar o mal da democracia e a erva daninha do marxismo”.
Estávamos então em plena Guerra-Fria, numa situação de crise da consciência pública nos EUA, e numamaré de regimes militares, no centro e sul da América, de tendências “conservadoras” ou “socialistas”. A pouco e pouco, Augusto Pinochet estabelece o seu sistema. Chama os “Chicago Boys” para reconstruir a economia, e no fim dos anos 70 os indicadores parecem justificar algum optimismo: nos últimos 20 anos, o Chile foi o país latino-americano que comparativamente cresceu mais, apesar de uma nutrida dívida pública, e do crescente aumento das despesas com as forças armadas (dez vezes o orçamento brasileiro do sector).
O “pinochetismo” não cria sementes doutrinais, a não ser que siga, como diz J. Comblin, a “ideologia da segurança nacional”. Vive grande parte dos seus 17 anos de existência em estado de excepção e como “ditadura do desenvolvimento” (K. J. Newmann), algures entre o pretorianismo arbitral e o pretorianismo dirigente. Não sofre, como a ditadura argentina, uma derrota internacional (nas Falklands), é tratado nalguns meios americanos (p. ex., Jeanne Kirkpatrick, na famosa tese Dictatorships and Double Standards) como “não um totalitarismo, mas um autoritarismo reformável”, o plebiscito de 1988, em que um alegado método autocrático derrota o autocrata (apesar de 40% de votos favoráveis).
Os comentadores internacionais salientam o papel do reaganismo (através do fundo NED e da AID) no convencimento “democrático” de Pinochet observando que o velho general ouviu melhor um presidente anticomunista que admirava, do que uma figura como Jimmy Carter, que tinha em pouquíssima conta. Seja assim ou não, a verdade é que Pinochet conseguiu sair de cena em vários actos, largando primeiro o Estado, depois o regime, depois o poder executivo, depois as forças armadas, depois o exército. Durante algum tempo, e antes de se tomar senador vitalício, coexistiu com o primeiro presidente da “nova ordem democrática”, Patrício Ailwyn, como comandante em chefe dos três ramos. A lenda conta (e ouvi-a de um dirigente sindical de origem índia, no Palácio da Vila, em Sintra, quando Ailwyn visitou Portugal pela primeira vez) que do gabinete do general se via o gabinete presidencial, e vice-versa. Alguém disse que era “como ser presidente de Espanha com Franco vivo”.
Ao contrário dos patéticos generais peruanos e argentinos, Pinochet “devolve” o estado com riqueza. Mas as lembranças da DINA, do assassínio de Letelier, dos “evaporados”, das valas comuns, criam demasiados pontos de ferida e ruptura. Como provou Roy Allen Hansen, numa doutoramento já de 1967, as intervenções militares na política chilena foram quase sempre desculpadas e apoiadas pelas classes baixas, desconfiadas com a modernização, com a administração e com a polícia normal. Pinochet pode ter ganho algum histórico a essa custa. Mas a sua condição de eterno vencedor não o torna numa personagem de Jorge Luis Borges, tal qual outros protagonistas das tragédias latino-americanas:
"Como todos os homens de babilónia fui procônsul, e como todos, escravo. Conheci a omnipotência, o opróbrio, a prisão”.
No continente dos Noriegas, Torrijos, Castros, Alvarados, Strossners, Banzers, Barrientos, Violas, Videlas, Gualtieris, Augusto Pinochet parece fadado a conhecer apenas o Poder. E, como Maquiavel aconselhou o Príncipe, deve pensar que é melhor ser amado que ser temido, mas não podendo ser amado, que possa ao menos ser temido.
Agora que o encontro com o Criador se aproxima, deve recodar-se daquela manhã fria de 23 de Novembro de 1975, quando, com Rainier do Mónaco e Hussein da Jordânia, assistiu ao funeral do generalíssimo Franco, em Madrid. Por essa altura de mudança, disse o antigo falangista Rafael Calvo Serer:
“Custou-me muito, mas agora sou democrata”.
O “estalinismo” de Pinochet só possuiu um paradoxo, e basta esse: é que terminou, não nas urnas fúnebres, mas nas urnas eleitorais. E o tirano saiu de cena pelo seu pé. Ou melhor, foi saindo. Revejamos, pois, urgentemente, as comparações.
Desde logo, o “tirano” continua a ser olhado pelos seus simpatizantes internacionais - por exemplo, pelo Figaro - como, no máximo, um “déspota esclarecido”, que salvou o Chile da anarquia e da pobreza, e o devolveu intacto aos civis. O acto simbólico da tomada de posse de Pinochet, como membro da câmara alta do parlamento, parece corresponder a esse (auto) convencimento, o de uma espécie de dever cumprido, o da salvação da Pátria. O ex-chefe da Junta Militar que tomou o poder em Santiago, há precisamente um quarto de século, não só não se mostra arrependido, como consegue ainda mobilizar adeptos e justificações. As versões chilenas das Mães da Praça de Maio (celebradas por Sting, para o povo do Ocidente Capitalista) bem podem sitiar o Senado, e clamar o continuado “Donde Están?”, que por cada vela e véu de revolta, haverá uma dona-de-casa capaz de jurar que, sem Pinochet, o país seria Cuba.
Devo dizer que, em 1975, quando ensaiava, com muitos outros “camaradas” mais ou menos anónimos, a implantação de um movimento simultaneamente nacionalista e revolucionário em Portugal, achava que Pinochet era a principal arma contra a esquerda, contra todas as experiências políticas fora da área estrita e dogmaticamente marxista-leninista. Lembro-me de discussões infindáveis e impróprias, primeiro na cantina do Liceu Pedro Nunes, depois no anfiteatro um da Faculdade de Direito (e na aula magna da reitoria da Universidade de Lisboa), onde nos irritámos soberanamente com os “conservadores” e “direitistas” (aliás sempre coerentes) que se recusavam a sacudir os militares chilenos do capote, e a renunciar (e a denunciar) a Pinochet. Por mim, sempre ia achando que era melhor salientar a hipocrisia de Mecas comunistas, como a China Popular, que continuava a negociar alegremente com a Nova Ordem de Santiago.
É que a “tranquilidade” chilena fizera-se com demasiados atropelos, vítimas, excessos e crimes descarados. Mesmo um homem insuspeito como o conservador (com fortes ligações à família dos serviços de informações) britânico Robert Moss, reconhecia (no seu clássico menor anticomunista, Tlie Collapse of Democracy) que o facto de Salvador Allende Gossens ter feito a corda que o enforcou (como bom burguês que descobriu o marxismo), não podia desculpar os disparates económicos (Moss escrevia em 1975) e os assassínios de quem trabalhava, mandava trabalhar ou dizia trabalhar para a Junta.
Em 1976, a igreja Católica chilena calculava que l% da população tinha sido detida, por períodos desiguais, desde o golpe de Setembro. A OEA indicava também nessa altura 4000 prisioneiros políticos, centenas de desaparecidos e talvez 2000 mortos. A Comissão Nacional para a Verdade e Reconciliação, estabelecida depois do regresso ao domínio civil, já nos anos 90, variou nas estimativas, e sobretudo sugeriu que várias mortes derivaram, não de execuções por “esquadrões da morte” (como no Salvador, ou na Argentina), mas de situações de combate urbano e quase-guerrilha.
Nos anos 70, porém, o Chile era, para a esquerda europeia, o que a Espanha Republicana, sobretudo depois de Guernica, foi para os intelectuais ”progressistas” de todo o mundo. As universidades ocidentais enchiam-se de “professores” exilados, que contavam histórias das piores atrocidades, formavam-se comités de solidariedade por toda a parte, Charlie Haden e Carla Bley tocavam, num formato de jazz., o “El Pueblo Unido Jamás Vencido”. Costa Gavras e Chove em Santiago divulgavam um regime de gritos e de sombras, erguia-se a lenda do trovador “guevarista” Vítor Jara, mãos quebradas e o crânio estilhaçado pela polícia de choque, depois de internado num campo de futebol. Em capelas e em bares, ouvia-se o último discurso-testamento de Allende (“Tengo fé en Chile y su futuro...”), o talentosíssimo grupo “étnico” Inti Illimani e o baterista hemiplégico Robert Wyatt (uma das grandes inspirações de muitas cabeças do meu tempo) declamavam regularmente fragmentos da “revolução impossível”, e os consulados e embaixadas do Chile eram boicotados, sitiados, ocupados e sabotados, um pouco por toda a parte.
Quem viveu esses tempos intensamente - até porque havia também uma revolução em curso, cá dentro - lembra-se das paixões e dos ódios que Allende, Chile e Pinochet despertavam. Sempre que o MFA, a 5a Divisão e o COPCON queriam alertar as massas para mais um golpe “reaccionário” na forja, agitavam o espantalho dos generais de Santiago. E muitas experiências “económico-sociais” do PREC diziam-se inspiradas num outro desastre, a política do governo de “unidade” de Allende, entre 1970 e 1973. Foi essa loucura laboratorial que levou Salvador Dali a dizer: “Os supercapitalistas espanhóis podem estar tranquilos, depois do que se passou em Portugal. Agora sim, não pode haver democracia socialista em Espanha.”
Mas como é que tudo, verdadeiramente, começou? A república chilena, fundada há 180 anos por um general revolucionário de ascendência irlandesa e por um exército argentino, teve durante o século XX experiências várias com governos de “Frente Popular”, e comportou sem um Partido comunista determinado e sólido. Nos anos 60, porém, o nome da esperança refomormista em política era o de Eduardo Frei, grande amigo de Marcello Caetano (que continuou a corresponder-se com este, mesmo quando do exílio interno de um e do exílio externo do outro), dirigente de uma democracia cristã mais justicialista e menos liberal do que as suas europeias, que conseguiu, até 1970, retumbantes êxitos em eleições limpas. O seu projecto de distanciamento do “imperialismo ianque” deu-lhe popularidade, sobretudo quando renegociou a exploração, pelos americanos, das ricas jazidas de cobre do país. Mas as costumeiras divisões nas “direitas” chilenas (entre Radicais, “Nacionais”, “Cristãos Democratas”, e outras estirpes representativas das classes médias e altas) acabariam por conduzir um médico bon vivant, maçon e socialista, amigo de Fidel e admirador de Ho Chi Minh, várias vezes derrotado por Frei, ao poder. Chamava-se Salvador Allende, ganhou eleições presidenciais por cerca de 80 mil votos em relação ao segundo candidato, e com menos 720 mil votos do que os conseguidos por todos os propostos pelas direitas. Allende representava uma ampla coligação de esquerda (social-democrata, socialista, comunista), e o facto de não conseguir maioria absoluta levou a que, nos termos da Constituição vigente em 1970, tivesse que ser investido pelo Congresso, onde a Democracia Cristã o apoiou, em troca de garantias de “paz institucional”.
As primeiras medidas de Allende - congelamento de preços e subida generalizada dos salários - escandalizaram Havana e Moscovo (segundo a ortodoxia, o objectivo inicial de um estado socialista deveria ser o de aumentar a produção e nacionalizar todos os sectores económicos relevantes) e provocaram um disparo assombroso nos hábitos consumistas da população. Com o decorrer dos anos, porém, Allende começou a ver-se cercado por personagens e forças que garantiam um clima de “loucura revolucionária”. Em 1971, a revista Problems of Communism, pela escrita de Leon Gouré, Jaime Suchlicki e Luis Aguilar, analisava ainda em termos de “racionalidade” a evolução desta prospectiva Cuba da América do Sul. Mas em 1973, as esperanças de ponderação tinham-se perdido. A inflação atingia os 600%, tinham-se instituído comités políticos de ocupação industrial e agrária, o governo decretava “o fim do estado burguês”, o influente líder socialista Carlos Altamirano afirmava ominosamente, embora com lógica impecável, “que as revoluções não se fazem com votos”, havia milícias paramilitares por toda a parte, os Tupamaros uruguaios tinham erguido uma base no Norte, chefiada por Raul Bidegain Geissig, na fábrica El Beloto, 20 técnicos soviéticos davam treino militar a seguir à laboração, corriam (desde o Outono de 1972, e provavelmente como provocação) boatos sobre a compra a Moscovo de caças supersónicos MIG-21, duplicara o número de funcionários públicos, e os problemas do novo sistema eram atribuídos, oficialmente, ao “bloqueio invisível” dos EUA e à “sabotagem económica” das classes capitalistas.
Santiago tomava-se o centro de peregrinação de revolucionários de a América Latina, e Allende ouvia cada vez mais os “românticos” e os “radicais” de várias proveniências: “Coco” Paredes, chefe da polícia judiciária, Luiz Femandez de Ona, genro do presidente e oficial da DGI (serviço secretos) cubana, Andrés Pascal, sobrinho do líder do MIR (o movimento esquerdista que queria “completar” a revolução).
O clima conspirativo era palpável. Henry Kissinger e Frank Carlucci são acusados de conspirar contra Allende, a missão naval dos EUA em Valparaíso mantém contactos estreitos com a Armada chilena (tida como o ramo mais conservador, ou antimarxista), a CIA gasta 8 milhões de dólares em subsídios à imprensa, partidos, rádios, sindicatos (segundo alguns dados, a contribuição soviética, entre 70 e 73, cifra-se em 650 milhões), começam as marchas das “donas-de-casa” contra a escassez de bens, que se tornam famosas pelo uso de panelas e colheres como instrumento sonoro, há greve geral dos camionistas, mas Régis Debray, solto pelo regime boliviano, confessa que teme mais “o aburguesamento da revolução do que um golpe militar”.
O resto é história conhecida. Os generais conduzem um pronunciamento “preventivo”, sob o pretexto de que se preparava um motim bolchevique numa base naval. A Junta convence o Congresso e o Supremo Tribunal de que a intenção é “constitucional”, dado que Allende “violara compromissos” tomados durante a sua investidura, e se “desviara” do quadro legal. O novo regime parece corresponder, à primeira vista, ao “sistema de guardas”, que o politólogo Robert Dahl apontou como uma das críticas fundamentais à democracia: segundo os “guardas” neo-platónicos, as pessoas comuns não sabem o que é o bom e o justo, e logo não se podem governar a si mesmas. Mas o paternalismo blindado pinochetiano é diferente: trata-se de proteger a Nação do terrorista, do agitador, do estrangeiro sabotador. O exército faz aqui o papel do “partido de vanguarda” leninista (teorizado, por exemplo, pelo mexicano Adolfo Sanchez), justificando o akamiento com a especialização, com a história, com a competência, com a superioridade moral, com a legitimidade política, com a virtude e a necessidade.
Os primeiros comunicados, para usar uma imagem clássica de Edward Lutwak, não são nem românticos/ líricos, nem messiânicos, nem improvisados, mas “racionais-administrativos”. O exército chileno, tomado como exemplo de profissionalismo no subcontinente, promete uma transitoriedade duradoura. Em 73, a Junta fala num período de excepção de 5 ou 6 anos, mas um ano depois Pinochet toma as rédeas, e chega a declarar que não haverá retomo durante a sua vida, “enquanto não se extirpar o mal da democracia e a erva daninha do marxismo”.
Estávamos então em plena Guerra-Fria, numa situação de crise da consciência pública nos EUA, e numamaré de regimes militares, no centro e sul da América, de tendências “conservadoras” ou “socialistas”. A pouco e pouco, Augusto Pinochet estabelece o seu sistema. Chama os “Chicago Boys” para reconstruir a economia, e no fim dos anos 70 os indicadores parecem justificar algum optimismo: nos últimos 20 anos, o Chile foi o país latino-americano que comparativamente cresceu mais, apesar de uma nutrida dívida pública, e do crescente aumento das despesas com as forças armadas (dez vezes o orçamento brasileiro do sector).
O “pinochetismo” não cria sementes doutrinais, a não ser que siga, como diz J. Comblin, a “ideologia da segurança nacional”. Vive grande parte dos seus 17 anos de existência em estado de excepção e como “ditadura do desenvolvimento” (K. J. Newmann), algures entre o pretorianismo arbitral e o pretorianismo dirigente. Não sofre, como a ditadura argentina, uma derrota internacional (nas Falklands), é tratado nalguns meios americanos (p. ex., Jeanne Kirkpatrick, na famosa tese Dictatorships and Double Standards) como “não um totalitarismo, mas um autoritarismo reformável”, o plebiscito de 1988, em que um alegado método autocrático derrota o autocrata (apesar de 40% de votos favoráveis).
Os comentadores internacionais salientam o papel do reaganismo (através do fundo NED e da AID) no convencimento “democrático” de Pinochet observando que o velho general ouviu melhor um presidente anticomunista que admirava, do que uma figura como Jimmy Carter, que tinha em pouquíssima conta. Seja assim ou não, a verdade é que Pinochet conseguiu sair de cena em vários actos, largando primeiro o Estado, depois o regime, depois o poder executivo, depois as forças armadas, depois o exército. Durante algum tempo, e antes de se tomar senador vitalício, coexistiu com o primeiro presidente da “nova ordem democrática”, Patrício Ailwyn, como comandante em chefe dos três ramos. A lenda conta (e ouvi-a de um dirigente sindical de origem índia, no Palácio da Vila, em Sintra, quando Ailwyn visitou Portugal pela primeira vez) que do gabinete do general se via o gabinete presidencial, e vice-versa. Alguém disse que era “como ser presidente de Espanha com Franco vivo”.
Ao contrário dos patéticos generais peruanos e argentinos, Pinochet “devolve” o estado com riqueza. Mas as lembranças da DINA, do assassínio de Letelier, dos “evaporados”, das valas comuns, criam demasiados pontos de ferida e ruptura. Como provou Roy Allen Hansen, numa doutoramento já de 1967, as intervenções militares na política chilena foram quase sempre desculpadas e apoiadas pelas classes baixas, desconfiadas com a modernização, com a administração e com a polícia normal. Pinochet pode ter ganho algum histórico a essa custa. Mas a sua condição de eterno vencedor não o torna numa personagem de Jorge Luis Borges, tal qual outros protagonistas das tragédias latino-americanas:
"Como todos os homens de babilónia fui procônsul, e como todos, escravo. Conheci a omnipotência, o opróbrio, a prisão”.
No continente dos Noriegas, Torrijos, Castros, Alvarados, Strossners, Banzers, Barrientos, Violas, Videlas, Gualtieris, Augusto Pinochet parece fadado a conhecer apenas o Poder. E, como Maquiavel aconselhou o Príncipe, deve pensar que é melhor ser amado que ser temido, mas não podendo ser amado, que possa ao menos ser temido.
Agora que o encontro com o Criador se aproxima, deve recodar-se daquela manhã fria de 23 de Novembro de 1975, quando, com Rainier do Mónaco e Hussein da Jordânia, assistiu ao funeral do generalíssimo Franco, em Madrid. Por essa altura de mudança, disse o antigo falangista Rafael Calvo Serer:
“Custou-me muito, mas agora sou democrata”.
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Este texto de Nuno Rogeiro foi publicado na revista Indy, do semanário O Independente número 515, de 27 de Março de 1998, nas páginas 30 a 38.
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