\ A VOZ PORTALEGRENSE: maio 2012

quinta-feira, maio 31, 2012

Luís Filipe Meira


Teresa Salgueiro no CAE

Mistérios e Maravilhas

Teresa Salgueiro, a voz dos Madredeus durante mais de 20 anos, veio a Portalegre ao Grande Auditório do CAE apresentar o seu novíssimo disco, “ O Mistério”, nas lojas desde dia 8. A sala sem estar cheia apresentou-se bem preenchida por um público de meia-idade, entusiasta quanto baste, que deixava transparecer o conhecimento e admiração pela obra da artista.
Naturalmente que este concerto gerava diversas expectativas, afinal a carreira de Teresa Salgueiro sempre se confundiu com os Madredeus e ela própria reconheceu em entrevista a este jornal, que o estranho é se essa colagem não existisse, não renegando a experiência e assumindo que esse tempo faria sempre parte da sua vida. E aqui nascia outro desafio, percebermos se apesar de assumir o passado, a artista conseguia libertar-se desse fardo, positivo mas um fardo, e definir um novo rumo para o futuro. As experiências anteriores fora dos Madredeus tinham passado por diversas realidades musicais e segundo a cantora foram sempre em parceria, enquanto “O Mistério”, esse sim, está assumido como o primeiro disco a solo porque escreveu as letras, compôs, produziu e o disco teve tempo de maturação suficiente para se tornar naquilo que ela e os seus músicos, com os quais se identifica totalmente, quiseram. Portanto como se percebe as expectativas eram imensas.
Expectativas que foram razão suficiente para adquirir o disco e assim, ir para o concerto totalmente identificado com esta nova etapa da carreira de Teresa Salgueiro. É óbvio, que esta prática podia ser um risco, caso o disco fosse uma desilusão, o que não aconteceu, mas fez-me temer que o concerto pudesse cair nalguma monotonia, que senti a espaços durante a audição, o que me levou a ir para o CAE com expectativas já mais moderadas.
Percebo hoje que a audição intensiva e antecipada de “O Mistério” terá sido, eventualmente, um erro, pois o concerto deu-me uma perspetiva que, certamente por minha culpa, não tinha conseguido descobrir no disco, tendo-me proporcionado, nomeadamente através das letras, uma forma diferente de abordagem a uma realidade que eu julgava conhecer.
Chegados aqui, pode o leitor inferir - se gosta de música e não esteve no CAE - que perdeu um bom concerto de uma voz marcante da música portuguesa que, tudo leva a crer, encontrou o rumo próprio para uma carreira a solo e julgo poder afirmar, sem grande margem de erro, que não deverá ter grandes dificuldades em se impor aqui e lá fora, por mérito próprio e não por viver na área de influência Madredeus. Situação que não é virgem recorde-se que Rodrigo Leão também se impôs depois de ter integrado e saído da primeira formação do grupo de Pedro Aires de Magalhães, se bem que as variáveis não sejam exatamente as mesmas. Rodrigo Leão foi pilar importante na estrutura mas nunca foi o rosto do grupo como Teresa Salgueiro, daí ter sido mais fácil para ele livrar-se dessa identidade, apesar da música que faz também não estar assim tão longe do universo Madredeus.
 “The last but not the least” ou seja por último mas não o menos importante, uma palavra para os músicos que estão com Teresa Salgueiro, que fez questão de salientar a reciprocidade na identificação, assumindo que o projeto só arrancou porque sentiu que estes quatro músicos eram as pessoas certas para o fazer. Salta à vista que há aqui grande proximidade e cumplicidade entre todos, o que dá grande unidade ao espetáculo. Ainda assim terei que dar enfase à imensa qualidade de Rui Lobato – já vinha acompanhando a cantora no tempo dos Lusitânia Ensemble – percussionista e baterista de primeira água e sabe-se quão difícil é trabalhar percussões em música tão serena e tranquila como esta.
O título deste texto,” Mistérios e Maravilhas” foi uma chapelada a um velho disco dos Tantra, grupo de rock sinfónico dos idos anos 70, liderado por Frodo, alter-ego de um visionário chamado Manuel Cardoso. Este título ocorreu-me durante o concerto, já eu tinha pensado em “Celebrar a vida” expressão que a artista utilizou por diversas vezes. No entanto penso que  Mistérios & Maravilhas” define perfeitamente o que se passou no CAE no dia 22. O concerto levou-nos a celebrar a vida, celebrando a música, mas sempre envolto numa aura de mistério associado à magia e à beleza da vida e da música numa perspetiva luminosa e positiva, evitando as sombras, as trevas e os malefícios deste mundo, como está consubstanciado neste estrato de “Ando entre Portas” (…) Há-de haver uma saída/Um sinal de luz na minha vida/Vou abrindo as portas/ Quero ver/ O horizonte que estão a esconder (…)        
O concerto foi muito bom e estou convencido que me vai ajudar a abordar o disco numa outra perspetiva, quiçá mais otimista. É também para isto que os concertos de suporte à edição discográfica servem, para nos abrirem novos horizontes e assim fruirmos na plenitude, as propostas que nos são apresentadas.

quarta-feira, maio 30, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

V – a bom entendedor, meia palavra basta

Evoquei George Orwell, um autor lido desde a juventude que sempre me impressionou. A sua obra máxima, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, publicada em 1948, constitui um implacável libelo contra a opressão, sobretudo a intelectual.  Não se justifica aqui resumir o livro, aliás sobejamente conhecido, mas referir o sistema linguístico, a Novilíngua, que deriva da filosofia do poder ditatorial e constitui uma das suas principais armas, em tenebrosa trama genialmente elaborada pelo autor.  
A maquiavélica estrutura gramatical amplamente descrita por Orwell parece premonitória quanto aos processos usados por alguns detentores do poder político, quando empregam palavras para sobre estas instalarem a sua força. Basta recordar alguns simples exemplos, entre nós recentes, para percebermos como a ficção se torna realidade.
Lembremos o episódio do “desvio colossal” e da fantástica “explicação” sobre ele fornecida pelo ministro Vítor Gaspar; evoquemos a forma ardilosa como o “temporário” confisco dos subsídios se tornou “definitivo”; tentemos perceber o verdadeiro significado de ambíguas expressões como “ajustamento estrutural excepcional”, “restituição intensa”, “libertação de mão-de-obra”, “crescimento negativo da economia”, “diminuição positiva da pobreza”, “abrandamento do crescimento da despesa”... Mil exemplos se poderiam aqui reproduzir no sentido de entendermos claramente que, perante este quadro, talvez Orwell não passasse de um banal aprendiz da sua própria estrutura novolinguística...
Recordemos, para melhor compreendermos o processo, as próprias palavras do autor: “Saber e não saber, ter consciência da completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitectadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a subtileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do acto de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra ‘duplipensar’ era necessário usar o duplipensar.
Duplipensar – Segundo Orwell, esta atitude implica a denominada duplicidade de pensamento, quando sabemos perfeitamente o que está errado e nos auto-convencemos de que está certo. Assim, o cérebro humano ganha a capacidade de guardar simultaneamente duas crenças contraditórias e acata ambas.
É à luz desta filosofia de comportamentos que poderemos “compreender” (e aceitar!?) como melhoraremos a economia acelerando os despedimentos; como deveremos empobrecer o País para que este saia da crise; como seremos mais cultos na medida em que mais escolas ou bibliotecas encerrarmos; como aumentaremos a nossa mobilidade portajando as estradas ou fechando as vias férreas; como resolveremos os esbanjamentos autárquicos eliminando freguesias; como equilibraremos o défice extinguindo (provisoriamente!?) feriados; como seremos mais prósperos abatendo barcos e tractores; como ficaremos mais saudáveis fechando hospitais; enfim, como viveremos mais felizes, encarando a austeridade como uma incontornável bênção imposta por outros.
Neste sistema político a palavra dispõe dum significativo papel. É pela lógica da palavra, quase sempre serena, que tudo se explica, mesmo o inatingível, que tudo se afigura lógico, mesmo o absurdo, que tudo se aproxima da facilidade, mesmo o impossível. Dizer hoje uma coisa e logo o seu contrário, cumprir hoje uma função e logo a rejeitar, formular hoje um compromisso e logo o contradizer, tudo é assumido em nome da inabalável certeza da infalibilidade.
Há pouco mentiam-nos, agora iludem-nos; não tenho certezas quanto à vantagem de um processo sobre o outro, quando ambos são gravosos e ofensivos para com a nossa dignidade.
Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o grande escritor russo, nos seus Escritos Ocasionais, disse a este propósito: Uma grande parte da infelicidade no mundo tem sido causada por confusão e fracasso de se dizer a palavra certa no momento certo. Uma palavra que não é proferida no momento certo é prejudicial, e tem sido sempre assim. Porque é que uma classe da população deveria ter medo de ser honesta com outra? De que é que têm medo?
Por mim, sinto fazer aquilo que posso, aquilo que devo: exercer o meu modesto poder da palavra contra a poderosa palavra do poder.
António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, maio 28, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

A DILUIÇÃO E  O ENFRAQUECIMENTO ?

O texto é da autoria da senhora ex-ministra da Justiça, Celeste Cardona, e foi publicado em 24 de Maio passado, no Diário de Notícias. Sinceramente, achei o artigo em causa uma espécie de bem intencionada redacção, porém redundante, algo vazio de propósitos consistentes e de objectivos concretos. O título é A CONSOLIDAÇÃO E O CRESCIMENTO e o mais interessante que nele encontrei -foi precisamente o me chamou a atenção- residiu na ilustração aí implantada, a perfeito despropósito.
Sobre a legenda “Não é possível crescer sem recursos disponíveis para financiar o crescimento. Para dispor de tais recursos, ou pedimos emprestado ou produzimos”, a imagem não deixava dúvidas: o inconfundível par de altas e esguias chaminés da nossa “fábrica da rolha”, isto é, da fábrica Robinson, de boa e saudosa memória portalegrense...
O texto e aquela sua aparente ilustração nada têm a ver um com a outra. Não são complementos, não se referem reciprocamente, nem ali existe qualquer ligação lógica que recomende tal justaposição. É uma imagem perfeitamente neutra, despropositada na sua relação com o conteúdo do artigo ou, então, tratou-se duma simbólica aliança, misterioso elo que se destinaria a suscitar interrogações ou a levantar dúvidas, no entanto reduzidas ao universo dos leitores portalegrenses do tal artigo da senhora ex-ministra.
Implicará a legenda que se coloque à Robinson a questão, ali expressa, de como poderá ela crescer sem recursos disponíveis para financiar o seu crescimento?
E será legítimo lembrar à Robinson que para dispor de tais recursos terá de pedir emprestado ou de produzir?
Ora este assunto, económico, está ultrapassado. Infelizmente, para toda a comunidade portalegrense e não só, já não existe a fábrica Robinson (na citada imagem ainda funcionando com os tais fumos negros e brancos que durante décadas encharcaram os céus lagóias com “abençoada” poluição!); poderá implicar aquela “provocação” que se coloquem as expressas questões (ou conselhos!?) a uma outra Robinson, de certo modo herdeira das gloriosas e honradas tradições que uma nobre família inglesa aqui implantou e desenvolveu?
A Fundação Robinson, embora bem mais recente, é uma instituição local com provas dadas. A sua consolidação e o seu crescimento interessam a toda a comunidade e não têm passadas despercebidas algumas das actividades e realizações de diversos tipos, como os sucessivos “dezassetes de Setembro”, dias em que anualmente se mostra em particular (para de novo “hibernar”!?), ou como a renovação patrimonial a que se tem vindo a entregar e que está à vista, por simples e magnífico exemplo, no caso de São Francisco. É muito, é pouco, é o possível, é o desejável? Isso não o sabemos bem, porque nos falta uma adequada informação.
Em termos de opinião pública, e publicada, a última oportunidade de acesso aos projectos em curso, por parte do seu principal mentor, ficou contida numa interessante entrevista divulgada n’O Distrito de Portalegre e datada de 26 de Julho de 2007. Quase cinco anos depois -é tempo mais do que suficiente- apetece deixar aqui algumas interrogações sobre os projectos, objectivos e ambições ali patentes, ou implícitos:
·                    Onde e como poderão os interessados ter acesso, fruir, e sobretudo adquirir as publicações da Fundação?
·                    Como poderão ser consultados, ou a eles se ter acesso directo ou on line, os arquivos prometidos e, certamente, entretanto elaborados e devidamente organizados?
·                    Onde está a “fábrica aberta”, em pleno funcionamento e com os próprios operários, no proclamado espaço de cultura? Quando é inaugurado o Museu de Arqueologia Industrial Robinson?
·                    O financiamento continua a vir da própria Fundação e da Câmara Municipal de Portalegre? Qual é o papel, aí, da aportação do Conselho de Curadores, da Região de Turismo e do Instituto Politécnico de Portalegre? Qual é a dimensão das sucessivas e múltiplas candidaturas aos fundos comunitários europeus? Que outras muitas potencialidades e que outros muitos atractivos para a Fundação se têm efectivamente concretizado?
·                    Que montantes foram envolvidos, quando e como se gastaram, em que projectos e com que implicados?
·                    Que pessoal altamente classificado, de dentro ou de fora de Portalegre, se tem constituído como quadros da Instituição, uma vez que os semi-amadores e os profissionais medianos não foram (e muito bem!) considerados?
·                    Quantos dos diversos nichos de emprego desencadeados -São Francisco, a Escola de Hotelaria, a página WEB, o Museu de Arqueologia Industrial, os Auditórios, a Realidade Virtual, os espaços para passear, etc- quantos desses nichos contribuiram para compensar, entre nós, a praga do desemprego?
·                    Quando devidamente se instalarão os Novos Habitantes no Espaço Robinson, transformando este numa Fábrica de Cultura? Cito os “candidatos”, da própria fonte oficial: Associação Juvenil Verdades, Escola de Artes do Norte Alentejano-Conservatório Regional de Música, Escola de Hotelaria e Turismo de Portalegre-Turismo de Portugal (este Novo Habitante já está efectivamente instalado!), Grupo Folclórico e Cultural da Boavista, Orfeão de Portalegre, O Semeador-Grupo de Trabalho e Acção Cultural de Portalegre, Qualifica-Associação Nacional de Municípios e de Produtores para a valorização e qualificação dos Produtos Tradicionais Portugueses, Sociedade Musical Euterpe e Teatro d’O Semeador-Associação de Animação Cultural e Produção Teatral.
·                    Para além do extenso painel mural sobre o arquitecto Souto Moura, há meses estendido sobre a fachada da velha fábrica, que dignidade lhe foi efectivamente concedida, em que realidade se transformaram, de facto e não virtualmente, os seus projectos?
Em boa verdade, muitas outras interrogações poderiam ser aqui e agora também formuladas, mas estas são suficientes e representativas. Como é óbvio, não espero nenhum tipo de resposta, nem isso tem qualquer importância. Apenas alarguei ao papel (ou à WEB) pensamentos e dúvidas que perpassam pelo espírito de qualquer vulgar cidadão portalegrense minimamente interessado pelo futuro da sua terra.
As angústias a que vamos estando habituados vão-nos afastando, quase insensivelmente, do interesse pelo conhecimento e pela discussão dos destinos da nossa comunidade. Temos de inverter essa tendência, quase natural, e exigir contas a quem dirige, a quem promete, a quem gere os cada vez mais escassos fundos comuns. Este é um inalienável direito de cidadania, em vivência democrática. O alheamento colectivo tem conduzido a nossa terra, e também o nosso país, pelos rumos infelizmente bem conhecidos... Queremos continuar por aí?
Inspirado nos ínvios ou talvez proféticos caminhos de um vulgar artigo de jornal, faço votos de que, em vez de consolidação e crescimento, não constatemos na Fundação Robinson mais um caso local de diluição e enfraquecimento. É que nenhum de nós, e sobretudo Portalegre, ganharia com isso...
António Martinó de Azevedo Coutinho

António Martinó de Azevedo Coutinho

A recente e bem sucedida acção cívica Abraçar Portalegre teve diversos significados, entre os quais se salienta o de ser possível mobilizar os cidadãos em torno de projectos colectivos.
Quem projectou a acção teve capacidade e audácia para planear, divulgar, sensibilizar e obter uma resposta satisfatória. Pode comentar-se que a motivação terá sido simbólica e que tudo se terá esgotado no acto, confinado em si mesmo. Não julgo sensata esta conclusão, porque o simbólico tem legitimidade para se constituir como objectivo duma comunidade e porque terá ficado no espírito dos participantes a consciência de terem cumprido a sua quota parte individual numa intervenção pública que valeu, sobretudo, pela consistente adesão colectiva.
Também nem interessará muito contabilizar com rigor a participação, isto é, se a prevista intervenção de uns quantos milhares de cidadãos terá sido exagerada em relação aos que, efectivamente, conseguiram estabelecer o desejado perímetro humano que solidariamente abraçou uma cidade.
Abraçar Portalegre traduziu-se portanto num êxito que nem o tradicional mau tempo, quase sempre associado às festividades lagóias, conseguiu ofuscar ou desmobilizar. Os sinceros parabéns aos organizadores e, também, aos participantes deve ser o lógico balanço a fazer, num voto que assinala a necessidade de prolongar a saudável mobilização.
Aqui fica, por isso, uma sugestão que se tem por lógica e oportuna. Nem sequer se pretende original nem, sequer, esgota em si todas as vastas hipóteses passíveis de obter uma próxima mobilização comunitária.
Entre as diversas imagens disponibilizadas nos meios informáticos, que tão úteis se revelaram na preparação e organização do evento, uma delas revela uma pequena parcela do imenso grupo frente a um monte de lixo depositado na via pública. Triste sinal dos tempos que vivemos, a fácil deposição de trastes domésticos e de toda a espécie de detritos em qualquer sítio da sua cidade tornou-se para muita gente um lugar comum. O resultado dessa falta de civismo é a todos os títulos deplorável, traduzindo-se no “exemplar” espectáculo que a outra imagem revela, em complemento da inicial.
Não podem os serviços autáquicos e outros, dedicados à recolha dos resíduos domésticos, resolver a contento todos os excessos cometidos um pouco por toda a cidade, normalmente junto aos ecopontos, mas não só...
Organizar uma operação do tipo Limpar Portalegre seria, seguramente, tarefa bem mais complexa do que a que se acabou de viver, pois implicaria a participação de estruturas e até de equipamentos adequados, exigiria cuidados sobretudo relacionados com segurança e com sanidade, assim como implicaria uma necessária coordenação com diversas entidades e serviços. Porém, nada que decididas vontades não possam ultrapassar.
Colectivamente, o exemplo a colher traduzir-se-ia numa consciencialização comunitária da necessidade de rever velhos hábitos e de evitar, para o futuro, antigas e indesejáveis práticas. As posturas municipais, como se sabe, não bastam para corrigir comportamentos ou para alterar mentalidades.
Ficou provado que é ainda possível fomentar um certo espírito de coesão nos habitantes de Portalegre, assim contrariando o natural pessimismo instalado. Quase todas as declarações publicamente colhidas convergiram na assumida convicção de que, afinal, a cidade está viva e até reage quando é “provocada”, sendo capaz de mostrar aos outros um orgulho lagóia que, apesar de tudo, não está perdido...
A sugestão de Limpar Portalegre, neste contexto, é apenas um exemplo.
Um exemplo demasiado óbvio, infelizmente, como se mostrou na gravura junta...
António Martinó de Azevedo Coutinho

António Martinó de Azevedo Coutinho

IV – a palavra foi dada ao homem para servir o seu pensamento

A questão da palavra, colectivamente trabalhada pelos partidos políticos, não se esgota neste particular, embora interessante.
Retoma-se, por isso, a pertinente crítica de João Adelino Faria que suscitou estas reflexões. A sociedade civil actual, dando conta duma lenta evolução (!?) semântica, criou e usa hoje um sistema linguístico diverso daquele que aprendeu, pela subtil introdução de novos termos vocabulares e, sobretudo, pela alteração dos significados tradicionais que eram atribuídos a certas palavras. Já disto apreciámos antes alguns curiosos exemplos. Mas não devemos ficar por aí.
São quase infindáveis os campos sociais onde se verificam consideráveis e por vezes confusas mudanças na terminologia “corrente”. Nos domínios informáticos, onde este texto foi produzido e onde está a ser exibido, parece ter entrado no seu léxico específico um conjunto de cretinices vocabulares importadas ou adpatadas à pressa sem qualquer sentido crítico, até porque existem na nossa língua termos perfeitamente adequados a cada situação “renomeada”. Printar em vez de imprimir, deletar por apagar ou save por troca com gravar são apenas alguns exemplos gritantes desta informatizada confusão mental. Mailar ou googlar pretendem ser formas verbais aplicadas com inteira propriedade quando alguém envia correio ou pesquisa através do seu computador. O anglicismo site tomou, quase de vez, o lugar do portuguesíssimo sítio... O mesmo se passa com link “versus” ligação e fones em vez de auscultadores.
A nossa língua é demasiado analítica perante o sintético idioma inglês? E isso, só por si, explica o nosso conformismo, a nossa passiva subserviência vocabular? Teremos receio de passar por “totós”?
Encaremos agora outra família de disparates, estes de um foro menos especializado, mais comum.
Talvez tudo tenha começado nos Estados Unidos, onde as preocupações de adocicar o racismo latente produziram a invenção das designações afro-americanos ou hispânicos para denominar os negros ou os mexicanos, cubanos e outros originários latinos.
Na mesma lógica, nós agora chamamos empregadas domésticas ou auxiliares de apoio doméstico às criadas de servir; auxiliares de acção educativa ou agentes operativos aos contínuos; os caixeiros viajantes de medicamentos chamam-se modernamente delegados de informação médica; os caixeiros das lojas passaram a técnicos de vendas; os bandos étnicos são grupos de jovens; os operários e outros funcionários denominam-se, nesta revisão do léxico comum, colaboradores; as crianças irrequietas, com “bichos carpinteiros” (como antigamente dizíamos), passaram a sofrer de comportamento disfuncional hiperactivo; os cábulas assumidos devem ser tratados como alunos de desenvolvimento instável; os gordos e os magros são pessoas atingidas por uma  disfunção alimentar; os afectados por mongolismo sofrem, afinal, de síndroma do cromossoma 21; as mães solteiras inserem-se numa família monoparental; quem assume o aborto permite a interrupção voluntária da gravidez; os cegos são, afinal, invisuais, mas não denominamos os surdos de “inauditivos” nem os paralíticos de “inmovimentáveis”; os débeis mentais já têm sido classificados como indivíduos com atitude não vinculativa... Talvez, nesta linha, depressa se classifiquem os anões como cidadãos verticalmente desfavorecidos ou os grandes obesos como seres horizontalmente beneficiados... Talvez!
Estes disfarces da realidade, (provavelmente?) consagrados em nome de piedosas intenções de igualdade, na maior parte dos casos nada resolvem no campo da autêntica inserção ou reabilitação social, assim como na luta contra as discriminações.
As fábricas são unidades produtivas; a chaga social do analfabetismo nacional desapareceu ao dar lugar à iletracia; os maus alunos já não “chumbam”, ficando apenas retidos; as “discriminatórias” 1.ª e 2ª classes nos comboios sobreviventes denominam-se agora respectivamente, em muitos casos, Conforto e Turística e por aí fora, pouca-terra, pouca-terra e também pouco senso, pouco senso...
O novo-riquismo que parece ter dado a volta ao nosso léxico habitual assume diversas combinatórias onde a única regra perceptível é de fugir a sete pés de toda a lógica assente na tradição linguística. O próprio corporativismo parece ressuscitado quando se empregam, com ar pretensamente sério, expressões classificativas como “gramatiquês”, “eduquês”, “economês”, “futebolês” e outras, muito mais num sentido globalizador do que crítico ou sistémico.
Este linguajar, que tem vinda a tomar o lugar da linguagem, constitui uma ameaça  a que poucos parecem dedicar alguma atenção.
Trata-se de um autêntico círculo vicioso para o qual George Orwell (o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, O Triunfo dos Porcos e outras obras notáveis) atempadamente nos avisou, quando disse: “Se as ideias corrompem a língua, a língua também corrompe as ideias.”
O enriquecimento -e nunca a destruição ou o abastardamento- do vocabulário não serve apenas para falar “bonito”; serve sobretudo para pensar “direito”.
António Martinó de Azevedo Coutinho

sexta-feira, maio 25, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

III – as palavras são boas de dizer
(ou de escrever) e más de cumprir

No passado ano, a propósito das Legislativas que conduziram à formação do actual governo, os diversos partidos políticos com assento parlamentar apresentaram os respectivos programas eleitorais.
Partindo da fraseologia utilizada por cada um deles, foi um grupo de professores universitários convidado para analisar as palavras mais usadas nesses programas, assim tentando perceber as linhas gerais de orientação política aí apresentadas.
O trabalho conduziu à formação de “nuvens” de palavras, informaticamente organizadas, contabilizando os termos mais frequentes na redacção dos textos programáticos.
Admitindo que as palavras podem ser neutras e até assumirem sentidos opostos, o sentimento comum remete para uma geral preocupação devida à criese económica. Os investigadores não ficaram surpreendidos pelas palavras-chave dominantes, embora tenham considerado uma certa componente demagógica nas mensagens, uma vez que estas se destinavam ao consumo dos eleitores que, afinal, decidiriam o resultado.
Eis os “mapas” relativos às palavras dominantes em cada programa eleitoral, organizados em função da sua frequência relativa. Torna-se interessante comparar a quantidade e a variedade das palavras mais usadas, patentes nestas “nuvens”.
O “mapa” anterior é relativo ao Bloco de Esquerda, enquanto o seguinte é da responsabilidade da CDU, coligação que engloba o Partido Comunista e os Verdes.
Segue-se a súmula que traduz a terminogia usada pelo CDS/PP.
Torna-se desde já curioso comparar o universo das palavras utilizadas, saltando à vista a maior diversidade usada pela CDU, sendo um pouco mais “económica” a colecção vocabular empregada pelo Bloco e pelos centristas. Aqui difere sensivelmente a temática dominante, Estado, dívida, economia, milhões, deve, trabalho, esquerda, euros, da parte dos bloquistas, contra Estado, CDS, social, Portugal, sistema, empresas, deve, gestão, por banda dos populares. A CDU, por seu lado, privilegiou as palavras política, trabalho, social, direitos, trabalhadores, desenvolvimento e Estado.
Segundo os estudiosos, as linhas de orientação relativas ao BE e à CDU traduzem a pujança de directrizes programáticas assentes em fortes ideologias, parecendo mesmo sobrelevarem os meros objectivos de doutrinação e propaganda.
Falta apresentar as “nuvens” de palavras estabelecidas a partir dos programas do PS e do PSD. Eis a primeira destas, onde se destacam os termos economia, social, política, desenvolvimento, Portugal, serviços, Estado, PS, sistema, reforço...
Confronte-se agora com o esquema relativo ao PSD. Saltam à vista desarmada as palavras Estado, empresas, PSD, desenvolvimento, gestão, Portugal, sistema, forma, medidas, economia e outras.
Na opinião dos docentes universitários convidados para a análise comparativa, estes esquemas revelam objectivos mais esbatidos e compromissórios. Enquanto a CDU, e também o CDS, mostravam palavras semelhantes nas suas propostas, como política, trabalho, direitos e trabalhadores (embora com significados seguramente diversos), estes termos estão praticamente ausentes nos programas do PS e do PSD. A palavra Estado surge destacada pelo PSD e pelo BE, ainda que reflectindo linhas ideológicas opostas.
A convicção dos analistas é a de que o PS pareceu, pela sua terminologia, o partido mais optimista. Todos os outros balançariam entre o discurso da crise e o da expectativa em relação ao efeito das medidas assumidas para a ultrapassar.
Esta dicotomia, logicamente, até foi normal em tempos de campanha eleitoral. Afinal, todos os discursos partidários, praticamente sem excepções, são tendencialmente optimistas quando pretendem projectar o futuro, uma vez que o eleitorado costuma valorizar quem lhe incute alguma esperança.
As promessas foram escritas. Falta apenas cumprir a palavra.
António Martinó de Azevedo Coutinho

quarta-feira, maio 23, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

II – não há má palavra se a puserem no seu lugar

Quando se aborda a questão do uso das palavras, nomeadamente das palavras escritas, lembro-me de certos episódios das crónicas jornalísticas indígenas em tempos febris, quando determinados títulos de um diário nacional de grande expansão fizeram algum furor.
Aí, as palavras boas, más ou eventualmente neutras (se as há!), desempenharam um influente papel em capas do Correio da Manhã. As suas deliberadas (e habilidosas) montagens gráficas pretenderam induzir sentidos ou interpretações orientadas para precisos fins eleitorais, num nítido desvio da imparcialidade a que um órgão de comunicação deveria, eticamente, estar obrigado.
No primeiro caso, o garrafal título VAMOS VOTAR NO PRIMEIRO (para evitar um segundo “escrutínio”), aponta claramente para o primeiro (candidato) na ordem da coluna vertical logo à direita. No entanto, aparentemente, uma mensagem nada teria a ver com a outra!
No caso seguinte, o título (lido na vertical) informa, inocentemente, que Eanes quer que todos votem. Para Solidificar Democracia, patriótico estribilho colocado logo abaixo, implica a continuação da anterior leitura: PSD... Duas frases, portanto, com uma sugestão de lógica complementaridade, em maiúsculas.
O terceiro exemplo mostra-nos como se pode fazer um claro apelo ao dever do voto na AD (Aliança Democrática), pela simples e “inocente” coincidência de ficarem justapostos os títulos de duas notícias “perfeitamente” distintas...
O último caso de propaganda eleitoral diz-nos que a AD vencerá, desta feita jogando apenas com maiúsculas dentro dum mesmo título.
As palavras escritas, desde que colocadas no lugar certo, como as palavras ditas, desde que pronunciadas no momento exacto, tornam-se eficazes, logo, “boas”.
E estes exemplos, apenas alguns escolhidos numa densa “selva” povoada por inúmeros casos similares, aconteceram em Democracia; logo, imagine-se o grau de manipulação da palavra susceptível de suceder em contextos ditatoriais...
Reflicta-se agora sobre a qualidade e o rigor informativos disponibilizados sobre um mesmo facto, utilizando apenas os títulos de primeira página de cinco vespertinos lisboetas -Diário Popular, Diário de Lisboa, A Luta, A Capital e Jornal Novo (todos já desaparecidos!)- alusivos a uma greve da Função Pública. As palavras usadas relatam o maior dia de greve depois do 25 de Abril, uma adesão maciça, dois fracassos e até adesões variáveis, portanto avaliações para todos os gostos... Quem tenha lido apenas um dos títulos terá ficado com uma opinião parcial, truncada, verdadeira, falsa, distante ou talvez aproximada sobre uma mesmíssima realidade. Qual foi, de facto, a verdade? A que serviço esteve a palavra? Que lugar, bom ou mau ou talvez assim-assim, lhe foi atribuído?
Pensemos nisto.
António Martinó de Azevedo Coutinho

terça-feira, maio 22, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

Terminou a época anual do pontapé na bola indígena. Um ano, excepto quanto ao FCP, para esquecer... Outros, mais filosoficamente, dirão: para lembrar. São os pedagogos, que acham haver sempre lições a reter. Pois, seria verdade, se alguém pudesse registar os resultados dessa aprendizagem, o que não parece ser o caso, tal a regularidade com que as coisas vão acontecendo, sempre cada vez mais iguais a si próprias. Digo coisas para homenagear o senhor ministro da dita coisa que instituiu e dignificou o vocábulo, onde passa a caber tudo sem nada lá caber...
Porém, este ano futebolístico terminou sob o signo da contestação ao nível dos chamados “dois grandes” lisboetas e, vá lá, nacionais... As inscrições murais, ainda que diversamente motivadas, revelaram o descontentamento latente. Pode até afirmar-se que não representam o sentir de todos os sportinguistas e de todos os benfiquistas, mas reflectem, certamente, o sentir de quem já está farto de promessas não cumpridas, de objectivos jurados sem qualquer concretização. Quando a vitória é o fim último visado pela competição, sobretudo no mundo do futebol, então pode afirmar-se que, de derrota em derrota ou de empate em empate, se chegou à frustração definitiva. Para o ano será melhor - transformou-se esta frase na expectativa ou na ladaínha de cada época, pobre sinal de tempos onde a desilusão do presente se acumula aos fatalismos de recentes passados com reflexos no próprio futuro...
Todos trauteamos a velha máxima dos vencidos e conformados, aquela que reza ser mais importante competir do que vencer. Pois, mesmo sendo isto teoricamente verdade, ganhar de vez em quando não é de todo incompatível com tal princípio, provavelmente de origem olímpica, quase de certeza grega, o que não lhe confere grande credibilidade nos tempos que passam...
Mas o que poderemos reter do que agora entra em pausa, sem esquecer a próxima saga colectiva dos nossos melhores (isso é outra história!), o que deve ficar como corolário da coisa?
Basicamente, que o Benfica foi capaz de perder um campeonato que esteve como nunca ao seu alcance e que o Sporting passou uma lamentável época em que foi sucessivamente desperdiçando todas as oportunidades com que sonhou. A amarga cereja no topo do verde bolo foi a Taça de Portugal, que a briosa Académica amplamente mereceu.
Para mim, tanto na Luz como em Alvalade aconteceram coisas bem mais graves do que estas públicas frustrações.
Mesmo sem grandes aprofundamentos, basta pensar um pouco no facto de todos os 66 golos marcados pelo SLB terem assinatura estrangeira. Repito: nenhum golo do Benfica foi marcado por um português. Quando pensa nos Eusébios, nos Águas, nos Torres ou nos Nunos Gomes dos anais da sua história clubista, entre resíduos de um sobrevivente orgulho, algum adepto do “glorioso” pode encarar este fenómeno internacionalista com fundada esperança?
Escrevia recentemente um analista destas coisas que apenas um jogador benfiquista -Nélson Oliveira- foi agora seleccionado, porque a equipa encarnada parece ter sido organizada para disputar muito mais a Taça dos Libertadores da América do que a europeia Champions! De facto, devia haver limites legais para esta “orgia” hispano-americana, sobretudo quando protagonizada por um clube que até 1979 apenas inscrevera atletas nacionais.
Isto é o resultado duma política desportiva errada que persegue apenas os efeitos a curto prazo, descurando os valores da sua própria e digna tradição... Afinal, com os resultados à vista.
Pelo lado do Sporting, não é mais brilhante o panorama. Pode dizer-se que quase metade dos actuais seleccionados foi formada na Academia leonina, mas também se perguntará quantos ainda moram em Alvalade e o porquê. Nem todos os golos da época tiveram marca holandesa, é verdade, mas para lá caminhamos...
Porém, como sportinguista, aquilo que neste momento mais me preocupa tem a ver com recentes declarações do treinador Sá Pinto. Quando este acaba de censurar as palavras dum jovem jogador da casa, emprestado à Académica, parece ter de súbito negado todo um surpreendente percurso actual em que vinha revelando um equilíbrio, uma competência e uma maturidade que poucos poderiam ter antecipado em alguém dotado duma personalidade quase sempre dominada pela impetuosidade e por uma certa irreflexão. Mas este estádio, infelizmente, pareceu ter regressado em tão infeliz episódio.
Quando Adrien Silva declarou que tudo iria fazer pela sua actual camisola, negra,
Sá Pinto censurou-o asperamente, explanando com azeda ironia o seu “apreço” pelo optimismo e pela vontade de ganhar assumidos por um atleta emprestado pelo Sporting. E acrescentou que este falara, apesar da indicação em contrário, a de não prestar declarações que envolvessem o seu clube de origem. Tudo isto foi duplamente grave, quer pela forma censória que implicou, quer pela infeliz e despropositada insinuação de que um atleta não deve bater-se pela sua camisola... Então, que é feito da honra, do brio pessoal ou do profissionalismo?
A resposta foi digna e justa: Adrien Silva foi, no unânime entender dos que sabem da coisa, o melhor jogador em campo. Quase me apetece dizer: - Bem feito!!!
Apenas me preocupa um pormenor com sérias incidências no futuro. Espero que a serenidade regresse de vez à magnífica prestação de Sá Pinto e que este infeliz episódio tenha sido uma excepção na sua actual norma de conduta.
Quero com isto dizer: espero que Adrien Silva (e outros promissores quadros sportinguistas por aí emprestados) possa trabalhar e jogar nas próximas épocas na Academia e em Alvalade. Deixem que outros vasculhem o Brasil ou a Argentina, o Chile ou o Paraguai, o Sahara ou o Bangladesh, dispensando dispendiosas buscas em longes terras por aquilo que existe aqui mesmo à mão, e muito mais em conta...
Então o que é nacional já não é bom?
Enfim, o fado lusitano, lamentavelmente e como é sabido, nem sempre acaba bem.
António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, maio 21, 2012

António Martinó de Azevedo Coutinho

I - a falar é que a gente se entende...

Há pelo menos dois tipos de ditados populares: os que sobreviveram à corrosão dos tempos e dos costumes e os que ficaram pelo caminho. Se preferirmos uma classificação mais moderna, poderiam ser denominados, respectivamente, como “constitucionais” e “anticonstitucionais”. Sim, porque a política também interfere nesta distinção.
A falar é que a gente se entende é um antigo provérbio que, em numerosa companhia, fica hoje na terra-de-ninguém, entre as trincheiras onde se abrigam os dois grupos devidamente classificados. A razão é simples: mesmo falando nem sempre nos entendemos... Portanto, podemos incluir este ditado (ou provérbio) numa zona vagamente indefinida, ao alcance dos tiroteios verbais.
A verdade é que, quando esteve em pleno vigor, esta máxima dispunha de um valor absoluto. A palavra era, então, um penhor de honra. Dispensavam-se os papéis, onde a palavra escrita seria atestada, certificada e aparentemente garantida; a palavra oral era mais do que suficiente. Ficaram na memória das antigas crónicas dos negócios, aqui mesmo em Portalegre, o aperto de mão e a palavra dada como forma de selar, de modo quase sagrado, toda e qualquer transacção ou compromisso entre as gentes dos campos ou as da cidade.
Vieram-me estas coisas à lembrança por causa duma recente crónica semanal de amigo, que leio (também o vejo e oiço) sempre com prazer e proveito. Trata-se da secção Gurus, assinada pelo João Adelino Faria no suplemento/caderno Dinheiro Vivo, inserido no Diário de Notícias dos sábados. Intitulou-se tal crónica Focados e Estruturantes. Já ninguém morre. Todos falecem. O novo-riquismo da linguagem deixou os portugueses doentes.
Entre os diversos e curiosos exemplos do nosso quotidiano que o jornalista nos recorda, o humor roça a indignação. Vale a pena ler o texto, onde se mostra como o ridículo, na nossa linguagem corrente, se vem tornando norma, funesta e insensível. E, pior do que isso, vai-nos fazendo correr o risco de perdermos o verdadeiro significado e valor daquilo que todos chamamos de bom português. Com este sério aviso, João Adelino Faria conclui a sua pertinente crónica do passado dia 5 de Maio.
A falar, de facto, a gente vai-se entendendo cada vez pior...
Não vale a pena citar por ora qualquer dos casos abordados na referido texto. Há um outro que particularmente me agride, e oiço-o constantemente, na boca de locutores, de sindicalistas, de políticos e de outros “profissionais” similares, tudo gente que devia escolher com cuidado e rigor a terminologia que usa em público. Trata-se da palavra aderência, usada em vez de adesão. A confusão, peganhosa, entre duas palavras completamente distintas no seu significado e na lógica do seu uso, faz-me pensar que deixámos de exercer qualquer espírito crítico (e até pedagógico) na escolha dos termos utilizados na comunicação.
Aderência e adesão são palavras arbitrariamente tomadas como sinónimos, talvez porque ambas exprimem uma ideia de ligação. Mas o primeiro vocábulo só deve ser usado quanto a coisas ou substâncias inanimadas, enquanto o segundo é próprio de pessoas vivas, distinguindo-se claramente os respectivos contextos.
A adesão a um partido político, a um sindicato ou a um clube desportivo, a uma doutrina religiosa ou a uma espiritual norma de vida é própria dos homens; a aderência do pneu ao piso da estrada, da sujidade à pele, do pó aos móveis, da pastilha elástica aos pavimentos ou da fita-cola ao papel é própria de matérias. Enquanto a adesão é voluntária, motivada, assumida e aprovada, mantendo-se de forma mais ou menos permanente, a aderência é meramente precária, concreta, apenas material e não definitiva.
Tudo isto é -ou deveria ser- óbvio, mas não é tido como tal. Entre nós a asneira campeia e faz lei...
A diferença a que João Adelino Faria alude no próprio título da sua crónica, ao distinguir as pessoas que hoje falecem daquelas que ontem morriam, também pode evocar as respectivas causas. É que ontem as pessoas morriam, sobretudo, com uma “nascença” ou com um “ar que lhes dava”; hoje elas falecem de cancro ou de AVC.
Talvez eu não esteja a ser suficientemente rigoroso naquela nomenclatura, pois, para ser mais fiel aos actuais relatos necrológicos, deverei dizer: um dos males que hoje mais atinge a Humanidade e constitui frequente causa de falecimento é, como se sabe, a “doença prolongada”...
A palavra, essa sim, está doente. Contaminámo-la nós todos, pelo pedantismo com que os tempos modernos carregam o nosso discurso bacoco, barroco, e muitas vezes de todo oco de significado autêntico e sincero. A simplicidade linguística, mesmo dispensando os absurdos acordos ditos ortográficos, vai-se perdendo sem remédio à vista.
As palavras e o seu sentido mais puro e mais nobre vão sendo uma saudade. Não disse um dia Fernando Pessoa que a sua Pátria era a Língua Portuguesa?
Mas isso foi há quantos séculos? Ou milénios?
António Martinó de Azevedo Coutinho